Monday, February 12, 2007

Aspirina











Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.


Álvaro de Campos, Poemas


Precisamos todos, e por mais que queiramos acreditar que a Verdade vale mais que a aspirina, basta uma constipação para reduzir a Verdade a nada e elevar a aspirina aos céus. Além disso basta percebermos quão inacessivel é a Verdade para darmos graças pela Bayers.

1 comment:

Unknown said...

Bem, eu tenho uma certa aversão a Fernando Pessoa, ainda mais a Álvaro de Campos - sei que me vão convidar a mudar de nacionalidade -, mas acho injusto que este post fique sozinho e abandonado sem comentários, para que todos os outros posts gozem com ele (o que seria ironicamente muito digno de Pessoa), só porque tem um poema dessa laia :P Para mais, não há como manter os seus inimigos perto...

Verdade e Aspirina
Um breve tratado a título profundo, em dívida e comentário (ou comentário dividoso), por 'El' David Seixas

Se bem o penso, o ponto deste post encontra-se na medida na qual se compara as mundaneidades da vida e os seus traços e vigores mais divinos. Eu pessoalmente pouco tomo a aspirina, o que me deixaria tempo para buscar a tal Verdade, mas, francamente, para que se quer qualquer uma das duas? A Verdade é um bem notavelmente sobrevalorisado, talvez porque como a Gioconda, ninguém entende o seu verdadeiro valor e na dúvida não lhe atribuem um preço, i.e., em bom português, ligam-lhe uma soma exorbitante. A Busca da Verdade é aquele reflexo, quase que reptiliano ainda, de manter umas certas reticências quanto ao mundo que nos rodeia, reminiscências talvez de um tempo em que o que se passava atrás da nossa nuca era tão importante quanto o que se passava à frente. Este reflexo é perfeitamente compreensível, visto ser o próprio modo de funcionamento do nosso cérebro que está em questão, sendo mais verdade a curiosidade humana que a Verdade em si. Pois não é então de admirar que, quando na nossa mente urgem requisições que a preenchem inteiramente, este ruído de fundo existencial pouco se manifeste, tendo o nosso pensamento em que se concentrar, como na árdua tarefa de corrigir os b's pelos v's, demanda à qual a Bayers soube achar solução, apesar de ainda não ter arranjado um similar medicamento que resolva de uma vez por todas o problema da língua entre as cidades de Lisboa e o Porto. É quando se retira todas as ocupações que assolam a mente diariamente que se chega ao estado em que o pensamento, à falta de preocupações exteriores, instalado num corpo que em ócio relaxa num ambiente propício à metafísica, prossegue o seu questionar interminável sobre a única coisa que está a fazer: ser. "Porque sou?"; aí está o estereotipo da questão cuja resposta está estreitamente ligada à Verdade. Resposta essa que não faz qualquer tipo de sentido, dada a pergunta ela própria ser um produto de um processo mental inadaptado à situação. Aliás não é preciso ser nenhum génio para desenterrar as grandes questões da Philosophia (com ph tem mais crédito); basta passar uns pesados minutos num ambiente vazio - a tal chama-se meditação profunda - para que tudo seja questionável: "Porque existo?", "Quem sou?", "De onde venho?", "O que querem mesmo dizer os gestos que fazem as hospedeiras de bordo?", "De que cor são as púrpurinas?"... por mais idiota que a pergunta soe, consideramo-la. É um estado de consciência próximo de quando se está bêbado e se chega a casa com fome, a fazer sons estranhos e a falar com os objectos - porque o homem bêbado é o único ser humano capaz de dialogar com os objectos -, e abre-se penosamente o frigorífico e por duas horas fica-se a olhar para dentro deste, a pensar no vasto leque de escolha; podem estar lá dentro um iogurte fora do prazo, um tomate podre e um alho francês cru, não interessa, considera-se-os na mesma!

Assim é a senda da Verdade.